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Um Lance no Escuro (1975)

  • Foto do escritor: Ábine Fernando Silva
    Ábine Fernando Silva
  • 16 de mar. de 2021
  • 4 min de leitura

Atualizado: 6 de dez. de 2021

Direção: Arthur Penn

Roteiro: Alan Sharp

Elenco principal: Gene Hackman (Harry Moseby), Susan Clark (Ellen Moseby), Melanie Griffith (Delly Grastner), Janet Ward (Arlene Iverson), Edward Binns (Joey Ziegler), James Wood (Quentin), Jennifer Warren (Paula), Harris Yulin (Marty Heller).

Gene Hackman (Harry Moseby) e Jennifer Warren (Paula) em "Um Lance no Escuro" de Arthur Penn

No melhor estilo noir “Um Lance no Escuro” aproveita a tessitura do triller policial tradicional para desenvolver um instigante estudo de personagem, explorando dilemas, dramas pessoais e psicológicos a partir das relações entre o detetive Harry Moseby, interpretado pelo formidável sisudo Gene Hackman, e o objeto de sua surpreendente investigação, impulsionando o protagonista a romper limites éticos e profissionais em nome de um dever moral de primeira ordem e envolvendo-o numa rede perigosa de eventos arquitetados por uma organização criminosa de contrabandistas. Alan Sharp constrói seu roteiro entrelaçando o arco principal do filme, centrado na investigação de Moseby acerca do paradeiro da jovem Delly Grastner (Melanie Griffith) e sua tarefa de trazê-la de volta à casa da mãe, com a subtrama que explora a vida pessoal do próprio detetive particular, sua frustração profissional como ex-atleta de futebol americano e a crise no relacionamento com a esposa Ellen Moseby (Susan Clark), cuja infidelidade se revela prontamente. Após ser contratado por Arlene Iverson (Janet Ward), ex-atriz decadente e mãe da moça supostamente desaparecida, o protagonista parte numa jornada investigativa repleta de intrigas familiares e pequenos conflitos de relacionamento que envolve não só a própria Delly, as pessoas de seu convívio, seus fugazes passatempos amorosos como também a contratante dos serviços do detetive, cuja relação tempestuosa com a filha é marcada por pequenas disputas afetivas e pessoais, revelando feridas e traumas consequentes de uma educação negligente e abusiva. Conforme a narrativa de “Um Lance no Escuro” caminha, com a descoberta do destino da jovem e a comprovação de que não se tratava exatamente de um desaparecimento, mas sim de uma atitude consciente de afastamento das influências e dos desmandos maternos, a personalidade do circunspecto e calculista Harry vai sendo cuidadosamente explorada, apresentando-nos um sujeito sensível, íntegro, cheio de culpas, cujos dissabores, principalmente profissionais, afastaram-no da mulher que amava, o que o faz decidir não abandoná-la, embora tenha que lidar com o turbilhão de sentimentos convulsivos advindos da constatação de uma traição com envolvimento emocional intenso. O filme chega inclusive a deixar num segundo plano o arco do trabalho detetivesco de Harry para humaniza-lo cada vez mais, envolve-lo com o público que se identifica com a complexidade de um herói aparentemente frio, que esconde muito bem seus sentimentos e que alcança sua integridade num exercício de auto-controle impressionante. O personagem de Gene Hackman quer compreender o que se passa a sua volta por isso não se precipita, seja em relação às questões de sua vida particular (a forma como lida com Ellen e com seu amante diz muito sobre si próprio), seja em relação ao cumprimento de sua tarefa com eficácia e profissionalismo, se bem que a crise no casamento acaba levando o detetive a se envolver rapidamente com Paula (Jennifer Warren), companheira de um dos ex-maridos da atrevida Arlene, sujeito dissimulado e com negócios espúrios a quem a jovem Delly também mantinha ligações íntimas nada discretas.

O detetive Harry Moseby (Gene Hackman) em ação no thriller noir de Arthur Penn

A trama nos despista com argúcia ao chamar nossa atenção demasiadamente para o drama pessoal do detetive (que em certo momento do filme é censurado por Paula por fazer as perguntas erradas), enquanto outros elementos (inclusive personagens) até então discretos ao longo da história acabam sendo rearranjados, subvertendo a aparente direção que o enredo tomava ligando pessoas, fatos e trazendo à luz determinadas motivações e interesses insuspeitos. Arthur Penn mergulha na intimidade dos personagens, revelando seus altos e baixos, fraquezas, vícios, frustrações e desejos com uma câmera perscrutadora, atenta aos gestos, olhares e empenhada na construção do drama e dos dilemas individuais. A direção não se censura e como um voyeur, capta os detalhes dos corpos femininos, interessa-se por sua sensualidade intencional, não se preocupa em registrar provocações sexuais, sustentando que de alguma forma, os seres humanos são moldados pelas experiências duras e traumáticas que explicam o que eles se tornaram. Há uma atmosfera sórdida, decadentista e imoral contumaz que não poupa nem sequer o protagonista que precisa lidar com um trabalho que não se orgulha (a vida dos outros) e com pessoas corrompidas, vis e mentirosas. Além disso, a direção consegue com primazia reconduzir e reanimar o suspense um tanto protelado pelo interesse psicológico nos personagens, fazendo com que o público acompanhe com apreensão a construção do quebra-cabeça promovido pelo detetive que necessita descobrir os motivos da morte prematura e estranha da jovem Delly a quem passou a nutrir uma simpatia paterna. Gene Hackman cujo biotipo durão e vilanesco cai como uma luva na representação de um sujeito que é a desconstrução da imagem ideal do herói, cheio de amarguras e frustrações pessoais, equilibra uma interpretação concisa, firme e resiliente como aparência externa, com uma demonstração de sensibilidade, empatia e humanidade nos momentos dramáticos mais íntimos. Vale destacar as atuações de Susan Clark, como Ellen Moseby, a esposa de Harry, cuja traição se explicaria pelo comportamento cômodo e distante do marido que realiza uma atividade que a mulher há tempos não aceitava. Há carinho e amor no casamento dos Moseby e Susan Clark consegue transmitir com sensibilidade a ambiguidade sentimental de Ellen, sua confusão e carência. Melanie Griffith mostra desenvoltura (num dos seus primeiros papéis no cinema), como a imatura adolescente Delly, espontânea, impulsiva, exalando promiscuidade, reflexo de uma vida de recorrentes abusos. Jennifer Warren chama atenção pela postura enigmática de gestos e sentimentos, interpretando a experiente Paula, cujo envolvimento afetivo com Harry é marcado por contradições e dúvidas. Edward Binns conduz com experiência o papel do simpático e prestativo Joey Ziegler, personagem que ganha uma centralidade narrativa ímpar, transformando-se no grande vilão da trama. Seu trabalho como dublê e a amizade calorosa com o protagonista, escondem bem seus verdadeiros motivos, o que o leva a manipular e conduzir situações sem levantar quaisquer suspeitas. “Um Lance no Escuro” ainda conta com a participação marcante de James Wood na pele do jovem mecânico, ciumento e intempestivo Quentin, namorado de Delly. Com um roteiro inteligente, vigoroso e intensamente dramático, o filme de Arthur Penn oferece uma experiência cinematográfica que promove suspense de maneira original e estimulante, contando ainda com um elenco formidável e cativante que consegue confidenciar os conflitos íntimos de seus personagens com uma verdade que definitivamente conquista o público.


Por: Ábine Fernando Silva

 
 
 

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