O Vício (1995)
- Ábine Fernando Silva
- 18 de mar. de 2021
- 4 min de leitura
Direção: Abel Ferrara
Roteiro: Nicholas St. John
Elenco principal: Lili Taylor, Christopher Walken, Annabella Sciorra, Edie Falco, Paul Calderón.

A mitologia vampiresca no cinema jamais havia recebido em toda sua história, tratamento tão original, subversivo e profundo como pelas mãos do provocativo Abel Ferrara e seu inestimável roteirista Nicholas St. Johnque que recorrem aos conceitos e particularidades da tradição do universo destes seres sedentos por sangue para construir uma trama cerebral, cujos argumentos narrativos e teóricos preferem explorar a condição inexorável e maldita da existência sombria, longeva e escrava dos vampiros, submetidos ao controle implacável dos seus próprios vícios por sangue, a partir de suas relações íntimas e análogas com as desgraças, iniquidades e a corrosão moral que integra a existência da própria humanidade, tão doente e vítima de desejos incontroláveis, tais quais as repugnantes criaturas das trevas. “O Vício” acompanha a jovem estudante de Filosofia Kathelleen Conklin (Lili Tylor) que após ser atacada de forma bastante peculiar por uma vampira num beco escuro de Nova York (a sugadora de sangue chega a indagar se a protagonista deseja ou não a continuidade da investida) passa a lidar com uma série de transformações biológicas e psicológicas advindas da metamorfose, mudando sua rotina acadêmica, seus hábitos fisiológicos, e, sobretudo, seu comportamento social e perspectiva em relação aos valores morais coletivos, o que a impele a tornar-se uma predadora inescrupulosa, atormentada pela insaciável sede de sangue. O roteiro de Nicholas St. Johnque utiliza certos elementos que caracterizam as lendárias criaturas da noite (hábitos noturnos, entrada permitida por convite, repulsa a luz do sol, capacidade em transformar sua presa, ausência de reflexo no espelho, etc.), traçando um paralelo com temas filosóficos e sociológicos que identificam uma humanidade assolada há tempos por guerras, genocídios, violências, dependência química, corrupção dos valores ético-morais, etc. sustentando a tese de que os “vícios” humanos, sem exceções (assim como o vício vampiresco por sangue), configuram a raiz de toda maldade existente (ou vice-versa). A vampira Kathelleen ao passo que experimenta as mudanças físicas, comportamentais e ideológicas, cuja trama desenvolve gradativamente, passa a acumular vítimas e a deixar-se sucumbir pela nova natureza que adquire um caráter de autenticidade pessoal e de práxis filosófica, à medida que os objetos teóricos de seus estudos ganham outra dimensão sobre suas atitudes, discursos e ações (a jovem sustenta a tese de doutorado acerca da contradição dos sistemas construídos por filósofos que não os praticavam verdadeiramente e para isto, funda seu raciocínio através do seu poder de influencia e transformação vampiresca). Desta forma, o vampirismo representaria uma existência legítima, capaz de promover rupturas com os convencionalismos ou hipocrisias sociais através, primeiro, de uma espécie de auto aceitação do mal inerente e em seguida, da cooptação de outros membros que comungariam de uma mesma causa. No entanto, o desfecho do filme trata de apontar contradições e incertezas que persistiriam no caráter de Kathelleen, já que a personagem afunda numa desolação suicida ao encarar a desgraça de sua própria maldição eterna.

A profundidade reflexiva de “O Vício” pode não ser facilmente apreendida pelo expectador, haja vista a gama de associações e referências a conceitos, ideias e pensadores importantes do Ocidente como Santo Agostinho, Kierkegaard, Feuerbach, Nietzsche, Sartre, etc. No entanto, Nicholas St. Johnque costura com inteligência as analogias entre a condição da protagonista transformada em um novo ser e abstrações filosóficas em torno de temas como o “niilismo”, “remorso como fortaleza moral”, “distanciamento do sagrado”, “existencialismo”, etc. O aspecto predatório e incontrolável do vício refletido na conduta dos vampiros encontra um ponto de inflexão em Peina (Christopher Walken), sujeito que ao longo dos anos teria conseguido controlar sua fome e seus impulsos sanguinários por meio do esforço mental e da capacidade de adaptação ao mundo humano. Tal atitude sugere que independentemente do mal intrínseco aos seres, é possível domar o “vício” e submetê-lo a uma vontade. Abel Ferrara empresta ao seu filme de vampiros uma atmosfera marginal, realista e urbana ao perscrutar as ruas de uma Nova York noturna, sombria, impessoal e hostil, sob o compasso de uma trilha de hip-hop provocativa e sinérgica (própria dos anos 1990), recorrendo a uma câmera de mão de aspecto documental e a alguns planos sequencia que acompanham a protagonista que perambula em espaços caóticos, repletos de indigência, drogas e criminalidade, ratificando a presença do mal, do vício e da degeneração por todos os lados. Tal sordidez também encontra vazão numa montagem que insere imagens reais de fatos históricos caros à humanidade como o Holocausto e a Guerra do Vietnã, eventos que por sua vez possuem ressonância nas reflexões sobre o “vício” presentes no enredo. A fotografia em preto em branco realça o horror, remetendo aos clássicos do gênero, mas ofusca o impacto da violência extrema dos ataques e das mordidas. Por falar nisto, a direção parece explorar muito mais a agonia, o desconforto físico e psicológico dos personagens do que a violência gráfica (os vampiros deste filme curiosamente não possuem os caninos protuberantes). Neste sentido, Lili Taylor se destaca num papel que exige modulações da aparência, dos gestos e das atitudes num antes e depois da metamorfose “vampiresca”. A atriz consegue transmitir a perturbação interna de sua personagem de forma visceral e verdadeira. “O Vício” talvez seja o filme de vampiros mais original e filosófico já realizado, sem deixar de ser misterioso, instigante e perturbador. Sua maior absorção temática e reflexiva acaba sendo medida, no fim das contas, pelo grau de conhecimento e referencial teórico do expectador.
Por: Ábine Fernando Silva
Bem interessante , fiquei com vontade de assistir !