O Homem Invisível (2020)
- Ábine Fernando Silva
- 8 de fev. de 2021
- 4 min de leitura
Atualizado: 28 de jan. de 2023
Direção: Leigh Whannell
Roteiro: Leigh Whannell
Elenco principal: Cecília (Elizabeth Moss), Adrian Griffin (Oliver Jackson-Cohen), James Lanier (Aldis Hodge), Emilly Kass (Harriet Dyer), Sidney Lanier (Storm Reid), Tom Griffin (Michael Dorman).

Misto de ficção científica, suspense psicológico, terror claustrofóbico e drama social, "O Homem Invisível” de Whannell aposta na sutileza narrativa bem orquestrada e habilmente dirigida para suscitar ambiguidade visual, promover angústia, inquietação e dúvida, construindo lentamente uma atmosfera apreensiva e tensa que lança sua emocionalmente instável protagonista numa condição ainda mais sufocante e aparentemente irreversível, tornando o expectador, até certo ponto, seu único cúmplice diante dos pesadelos que se descortinam de forma gradual e devastadora. A arquiteta Cecília (Elisabeth Moss) é casada com o rico e brilhante físico Adrian Griffin (Oliver Jackson-Cohen) que a mantém sob uma espécie de cárcere privado, numa vigilância física e psicológica doentias. Ao passo em que a jovem consegue ardilosamente fugir, escondendo-se na casa do amigo James Lanier (Aldis Hodge) com a ajuda da irmã Emily Kass (Harriet Dyer), o fantasma dos abusos e violências do recente relacionamento destrutivo persistem, dificultando o processo de reconstrução de uma vida nova. O tempo passa e Cee acaba descobrindo que seu ex-marido teria morrido em circunstancias bastante estranhas, deixando para ela, por intermédio do cunhado Tom Griffin (Michael Dorman) parte de uma fortuna sob condições um tanto peculiares. Entretanto, o que parecia significar o início de uma vida nova, transforma-se num pesadelo ainda pior para a moça, uma vez que o ex-companheiro, até então tido como morto, elaborou uma espécie de traje especial capaz de deixá-lo invisível, lançando mão de seu poder de forma obsessiva e sádica para destruir a vida da ex-mulher. O texto da trama de Whannell mesmo contando com um enredo simples consegue extrair de suas premissas básicas (relacionamento abusivo e o poder da invisibilidade) situações angustiantes, perturbadoras e de forte apelo dramático, corroborando a versão dos eventos pela ótica de Cee, colocada em xeque após um bom tempo de progressão da história. O roteiro lança sua atormentada heroína numa empreitada arriscada, frenética e vingativa para provar a própria inocência, aspecto que num primeiro instante chega a soar um tanto exagerado se considerarmos sua personalidade perturbada e seu estado mental delicado e instável (o retorno à mansão a qual fugira no início do filme, a descoberta do segredo científico do ex-marido e posteriormente a fuga do hospital psiquiátrico culminando no embate com Tom Griffin invisível, embora constituam eventos pouco plausíveis quando se considera o estado emocional da personagem, não chegam a comprometer o envolvimento do expectador com a trama, contribuindo inclusive para a ação dinâmica do último ato).

O longa aposta acertadamente suas fichas na performance intensa de Elizabeth Moss que empresta à personagem uma personalidade cautelosa, inquieta e paranoica ao tentar seguir em frente depois do inferno pessoal experimentado, apezinhada pela a certeza de que a presença maquiavélica e violenta do antigo companheiro não a abandonou. As mudanças físicas e a expressão de sentimentos conflitantes como tristeza, dor, ansiedade e histeria se sobressaem na interpretação da atriz, que em muitas cenas é desafiada a interagir sozinha, executando gestos, movimentos e reações de forte carga dramática. Desta forma, há uma escolha acertada e inteligente na ambiguidade da condição de Cee, cuidadosamente retratada numa direção minuciosa e discreta que se ancora numa cinematografia insinuante, que utiliza a cenografia e os objetos do design de produção a seu favor, acenando para as suspeitas de uma possível insanidade mental da protagonista, invariavelmente levada em conta durante um considerável tempo da trama pelos personagens que testemunham diretamente o drama da sofrida mulher (há aqui uma crítica a tendência machista em desacreditar vítimas de violência e abusos) como também pelo próprio público que chega a suspeitar da fidedignidade perceptiva de uma mulher fragilizada por uma relação tóxica e violenta. Ao não explorar estrategicamente os elementos de ficção científica que justificariam o poder e o potencial nefasto do traje da invisibilidade, a narrativa acaba sugerindo a tese da instabilidade mental ou da alienação da heroína, lançando uma "pulga" atrás da orelha do espectador. Por outro lado, Leigh Whannell manipula com cuidado e maestria sua câmera, estrategicamente colocada em posições específicas do cenário, dispondo de um voyeurismo sutil, como se uma entidade sobrenatural estivesse observando e acompanhado os passos da moça. Soma-se a isto o envolvimento do vilão ou do “terror invisível” numa atmosfera de mistério e de frieza desumanos, aumentando a hostilidade da ameaça e mais adiante seu alcance de violência e destruição. Boa parte da narrativa utiliza ambientes fechados, veiculando tensão e opressão, recorrendo a uma fotografia dessaturada cujo predomínio do cinza e do azul-claro corrobora a atmosfera angustiante e o estado de tormento psicológico da atribulada personagem de Elizabeth Moss. A mixagem de som e a trilha (com ritmos desalinhados e abruptos) auxiliam o suspense nos momentos críticos, criando clima, estimulando a dúvida, o medo e potencializando a ação no “time” exato. “O Homem Invisível” de Whannell só referencia discretamente a obra original de James Whale, mais no que diz respeito à insanidade obsessiva do vilão e logicamente sua invisibilidade, constituindo-se como uma experiência de releitura cinematográfica oportuna e sensível ao abordar e refletir por meio do suspense e do terror um tema tão trágico e urgente como a violência doméstica contra mulher e suas implicações sociais. Outras discussões também aparecem no subtexto da trama tais como o uso antiético e desumano da ciência, as consequências emocionais devastadoras de uma relação abusiva, a já mencionada tendência em desacreditar mulheres vítimas de violência, além da manipulação machista e do abuso de poder. A mensagem final do acerto de contas e da vingança em grande estilo contra o vilão agressor funciona bem como saída dramática simbólica e apoteótica ao perturbador e trágico intento violento e machista do filme, essencialmente porque dota a protagonista com a coragem, o ímpeto e a sagacidade imprescindíveis para lançar mão dos próprios estratagemas inescrupulosos do seu carrasco e definitivamente eliminá-lo. O título da obra: “O Homem Invisível” acaba evocando um trocadilho perverso e irônico para uma questão social atual e urgente de violência que o filme aborda de forma oportuna e criativa, cujas matizes e contornos são assustadoramente visíveis e reais.
Por: Ábine Fernando Silva
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