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O Diabo de Cada Dia (2020)

  • Foto do escritor: Ábine Fernando Silva
    Ábine Fernando Silva
  • 22 de fev. de 2021
  • 5 min de leitura

Atualizado: 12 de mai. de 2023

Direção: Antonio Campos

Roteiro: Antonio e Paulo Campos/Baseado no romance de Donald Ray Pollock

Elenco principal: Tom Holland (Arvin Russell), Mia Wasikowska (Helen Hatton) Robert Pattinson (Preston Teagardin), Sebastian Stan (Xerife Lee), Jason Clark (Carl), Bill Skarsgård (Willard Russell), Harry Melling (Roy Laferty), Riley Keough (Sandy), Haley Bennett (Charlotte Russell), Eliza Scanlen (Lenora), Kristin Griffith (Emma Russell).

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Produção Neflix em parceria com o diretor Antonio de Campos

Adaptação do romance homônimo de Donald Ray Pollock, a produção Netflix realizada pelo cineasta de ascendência brasileira Antonio Campos, “O Diabo de Cada Dia” narra de forma sombria e trágica o drama em forma de maldição que recai sobre duas gerações de uma família humilde e provinciana, cujo fatalismo aproveita o casuísmo inevitável de destinos que se cruzam, fazendo vir a tona uma violência gestada na desconfiança das supostas boas intenções, resultado de um desencanto com a vida e com a fé, representadas na figura do protagonista Arvin Russel (Tom Holland). O filme de Antonio de Campos estrutura-se a partir do entrelaçamento de arcos narrativos, delicadamente desdobrados num aparente sequenciamento independente, onde num primeiro momento, mergulhamos na vida de Willard Russell (Bill Skarsgård), ex-combatente americano na Segunda Guerra Mundial, sujeito pacato, cuja inocência dilacerada por experiências insanas no front, deixou-lhe feridas psicológicas perturbadoras, desorientando sua relação com o mundo e com a fé, embora tenha alcançado um jeito de seguir em frente, casando-se um tempo depois com a garçonete Charlotte Russell (Haley Bennett) e indo morar numa pequena cidadezinha no interior de Ohio (Knockemstiff), onde nasce seu único filho Arvin Russell. Mais adiante acompanhamos a trajetória da devotada jovem órfã Helen Hatton (Mia Wasikowska), desposada pelo fanático pastor Roy Laferty (Harry Melling), gerando Lenora (Eliza Scanlen) que acabará sendo criada por Emma Russel (Kristin Griffith), avó de Arvin. Seguindo o fluxo das subtramas, o expectador se choca com a frieza dissimulada de um casal de serial killers, formado pelo fotógrafo Carl Henderson (Jason Clark), “o atirador” e pela também ex-garçonete Sandy Henderson (Riley Keough), “a isca” que deixam uma trilha de sangue nas regiões das rodovias que circulam, colecionando seus “troféus” de fotos das vítimas. Após o suicídio do pai do protagonista, além de acompanharmos seus passos agora vivendo com a avó, a narrativa finalmente nos revela a vida desonesta, os negócios ilegais e as conexões imorais do aspirante a prefeito de Knockemstiff, o xerife Lee Bodecker (Sebastian Stan). “O Diabo de Cada Dia” possui um roteiro que consegue dar conta das camadas narrativas com desenvoltura e mesmo a centralidade da história do adolescente Russell, não compromete a profundidade de tratamento na abordagem pessoal e psicológica dos outros personagens e de suas histórias, ao contrário, complementa-as numa conexão premeditada, encaixando-as surpreendentemente para compor um caleidoscópio ou rede de tragédias humanas. O filme utiliza o recurso da voz em "off" como uma espécie de condutor dos acontecimentos, às vezes arauto, intensificando o tom solene e poético do enredo. Os Russell são explorados pela ótica da desgraça e de uma espécie de maldição existencial que paira sobre suas vidas como uma sombra que ecoa os traumas do passado. Willard traz consigo os fantasmas da guerra, não só representados pela pistola Luger, objeto de simbolismos nefastos, depois deixada de herança ao filho, como também por um sentimento religioso que o teria safado da morte e transformado sua conduta por meio de uma devoção delirante que não poupou se quer o único filho, obrigado a rezar com fervor sob um altar de cruz erigido no meio da mata. A morte da esposa é a gota da água que escancara o desiquilíbrio mental e o desespero de um sujeito que sacrifica o cão do filho, erguendo-o crucificado sob o altar, como uma oferenda macabra que na perspectiva do perturbado homem estaria à altura da aprovação e do agrado divino. O suicídio é a escolha para as amarguras profundas e para o peso insuportável do luto. Aliás, se tem uma reflexão pungente e estarrecedora que torna “O Diabo de Cada Dia” um filme poderoso e atual são sem dúvidas, as considerações aviltantes, inescrupulosas, psicóticas e mórbidas advindas de uma imersão sócio-cultural no seio da comunidade religiosa.

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Robert Pattinson interpreta o cínico e inescrupuloso Reverendo Preston

O longa de Campos retrata uma espécie de delírio ensandecido, irracional e ingênuo que conduz ao erro, à perdição e contraditoriamente, ao próprio mal, disfarçado de autoridade, iluminação e excepcionalidade. É desta forma que Helen tem sua vida ceifada pela loucura profética do marido, o pastor Roy, assim como o dissimulado, abusador e hipócrita reverendo Preston, interpretado com instinto por Robert Pettinson, utiliza-se da sua condição de autoridade espiritual e liderança religiosa para aliciar e abusar das jovens irmãs de sua congregação. Por outro lado, o personagem vivido por Tom Holland, cheio de angústias acumuladas, personificação da conduta austera e hostil do pai, representa uma espécie de resistência idônea, justa e digna de alguém desiludido com uma fé cheia de falsas promessas e com um Deus que não poupara seu cão, seus pais e consequentemente sua querida meia irmã Lenora, cuja morte acidental fora resultado dos abusos do reverendo Preston . Tem-se a impressão de que os personagens, tanto os justos, quanto os ímpios são engolidos pela fatalidade de um destino cruel que faz prevalecer à máxima do “aqui se faz aqui se paga”. O introspectivo e justo Arvin é puxado por uma mão invisível que o coloca diante de atos de extrema violência e vingança, como se fosse um instrumento (intencional ou não) para que se cumpra uma justiça maior e quem sabe, ironicamente divina, primeiro contra os jovens que cometem bullying com Lenora, depois contra o pastor Preston , passando pelo casal psicopata Carl e Sandy, e finalmente o inescrupuloso xerife Lee. As tragédias do protagonista, conforme referido, possuem ressonâncias ulteriores, numa influência sombriamente hereditária e seu gesto ao retornar à casa dos pais e finalmente enterrar os ossos do cão e a Luger (objeto que o auxilia como um amuleto mágico), alude ao simbolismo do acerto de contas com o passado e a iniciação de um novo ciclo. Antonio de Campos demonstra domínio na retratação da intensidade dramática, muito sutil, interessada nos gestos, olhares, na desenvoltura da encenação e dos ótimos diálogos, com uma câmera que muitas vezes perscruta os ambientes e personagens, destacando-se os sutis movimentos de dolly in que conectam sensivelmente o expectador aos detalhes dramáticos, equilibrando em certos momentos, vale destacar, o uso de uma trilha sonora solene, com instrumentos de corda e piano. A montagem estabelece percursos narrativos perspicazes que apresentam os eventos para logo depois, recorrer a breves recuos no tempo, contextualizando e elucidando esses mesmos eventos. Constrói-se uma atmosfera de desolação, alienação coletiva, sordidez e desamparo com uma fotografia que prioriza tonalidades frias, especialmente em ambientes fechados e que registra com realismo o design de produção da década de 1950. Os trabalhos dos atores Tom Holland, Bill Skarsgård, Robert Pattison e Sebastian Stan merecem destaque pela representação sincera e instintiva, sem forçações caricaturais ou excessos, tudo muito dentro do tom, além de não passarem despercebidas as atuações de Jason Clarke, Riley Keough, Harry Melling e Eliza Scanlen. “O Diabo de Cada Dia” transforma a tragédia em carro chefe, tem a força de demonstrar que de boas intenções o inferno está cheio, reflete sobre os perigos de uma devoção cega e sobre a condução inescrupulosa da fé, mas se assenta na justiça e na retidão dos princípios para finalmente contradizer a tese pessimista do mundo que sustenta por quase toda narrativa.


Por: Ábine Fernando Silva

 
 
 

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