O Anti-Herói Americano (2003)
- Ábine Fernando Silva
- 9 de mar. de 2021
- 3 min de leitura
Atualizado: 12 de mai. de 2021
Direção: Shari Springer Berman, Robert Pulcini
Roteiro: Robert Pulcini , Shari Springer Berman
Elenco principal: Paul Giamatti (Harvey Pekar), Hope Davis (Joyce Brabner), Judah Friedlander (Toby Radloff), James Urbaniak (Robert Crumb).

Narrativa biográfica que homenageia em vida o arquivista, escritor, amante de jazz e quadrinista Harvey Pekar (magistralmente interpretado por Paul Giamatti) “O Anti-Herói Americano” constrói com vigor e contundência uma amálgama de linguagens para retratar a odisseia das desavenças na vida comum de um homem simples, mal-humorado, desiludido com o pretenso e ilusório “American way of life”, além de sensivelmente mordaz em suas reflexões sobre a vida, a sociedade, os valores e sobre si mesmo, nas tentativas hilárias de inserção no cosmos do quotidiano. O enredo do filme esbanja criatividade ao incorporar a linguagem de Hq’s à gramática cinematográfica para contar a história do rabugento e nada convencional Pekar. A construção de um roteiro com idas e vindas ao passado e ao presente do personagem, com o uso criativo da quebra da quarta parede (inserindo o Harvey Pekar da vida real narrando e comentando sarcasticamente sua própria história), além da utilização das próprias situações inusitadas dos quadrinhos para compor a narrativa, mesclando a arte gráfica (introduções a eventos, balões de fala e desenhos que invadem as ações do personagem de Paul Giamatti) à realidade de Pekar, não poderia ser mais bem concebida e executada pelo criativo casal de diretores/roteiristas Shari Springer Berman e Robert Pulcini (o filme foi vencedor do premio do júri no Sundance Festival e recebeu indicação ao Oscar de Melhor Roteiro Adaptado). Ao narrar as peripécias da aparentemente trivial e infeliz vida do quadrinista, sua rotina monótona de arquivista em um hospital, fracassos amorosos, colecionismo compulsivo (discos e quadrinhos), paixão pelo jazz, desilusão com a hipocrisia social, suas falsas promessas e finalmente sua sensata ideia de retratar seu universo quotidiano em forma de Hq’s (influencia inestimável de Robert Crumb), a trama não só explora a personalidade ácida do anti-herói, revelando um inconformismo diletante, como também ressalta o inusitado “estrelato” e reconhecimento artístico de Pekar ao representar a voz abafada e marginalizada do homem simples do subúrbio, pobre de oportunidades, sempre batalhando muito para sobreviver e acostumado a colecionar fracassos e frustrações pessoais. O longa é permeado por uma “atmosfera” tragicômica e a passo que nos identificamos com as penúrias e inconvenientes na vida do protagonista e nos divertimos com seu mau humor atávico e hilário, automaticamente somos levados a acreditar que tamanho pessimismo e contrariedades só poderiam resultar em mais sofrimentos e tragédia. No entanto, a genialidade artística, insistência e perspicácia de Pekar levam-no ao reconhecimento social e financeiro, transformando sua própria vida (que, aliás, ele não abandona, continua trabalhando no hospital como arquivista, vivendo na mesma casa e tendo as mesmas relações sociais), tornando-o famoso e levando-o a protagonizar ao vivo em rede nacional uma discussão polêmica e vexatória com famoso apresentador de talk-show David Letterman.

O elenco do filme realiza um trabalho mimético e caricato de extrema entrega, elaborado e apaixonado, haja vista que muitos dos personagens verdadeiros que inspiraram as Hq’s do cartunista parecem estar por trás da construção de seus correspondentes ficcionais (além do próprio Harvey, sua esposa Joyce Brabner e o icônico nerd Toby Radloff aparecem em depoimentos que entrecortam a ilusão narrativa). A interpretação de Paul Giamatti convence sem reservas e está à altura do personagem, ranzinza, inquieto e sempre destilando reflexões mordazes sobre a vida. Hope Davis que vive Joyce Brabner consegue emular com naturalidade e simpatia a ex-fã e companheira do “anti-herói”, sagaz em analisar os comportamentos e perfis psicológicos alheios e grande incentivadora do trabalho do marido, sendo fundamental no processo de composição artística de Pekar durante o enfrentamento de um câncer de próstata (retratado no longa). Judah Friedlander que interpreta o assumidamente nerd e amigo do protagonista consegue ser tão fiel aos trejeitos, comportamentos e modo de falar de Toby Radloff que confunde realidade e ficção. Aliás, a estratégia metalinguística da trama é um dos seus pontos fortes e quando mistura ficção, documentário e a própria linguagem de quadrinhos estabelece um poder de alcance expressivo e temático, imersivo, prazeroso, conquistando nossa simpatia e admiração. A caracterização e ambientação do subúrbio de Clevaland, bairro industrial, com habitações decadentes e muitos pobres (onde viveu durante toda a vida nosso anti-herói) são muito bem abordados pela câmera impertinente dos diretores e criam a atmosfera que influencia nas oscilações de humor de Pekar, tornando-se o palco desta odisseia ácida que pulou dos Hq’s para as telas (ou mesclaram-se oportunisticamente no filme). A trilha de jazz que também está presente em boa parte da trama e que foi uma das grandes paixões da vida do artista suburbano dá o tom a esta obra magistralmente apoteótica e tributária, tão incomum, original e cáustica como não poderia deixar de ser em se tratando de Harvey Pekar.
Por: Ábine Fernando Silva
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