Gritos e Sussurros (1972)
- Ábine Fernando Silva
- 5 de mar. de 2021
- 3 min de leitura
Direção: Ingmar Bergman
Roteiro: Ingmar Bergman
Elenco principal: Agnes (Harriet Andersson), Maria (Liv Ullmann), Karin (Ingrid Thulin), Anna (Kari Sylwan), David (Erland Josephson).

“Gritos e Sussurros” de Ingmar Bergman articula uma trama intensamente dramática que "mergulha" num "oceano" de gestos, falas e pensamentos para revelar em detalhes, aspectos íntimos e indiscretos das personalidades tão díspares e multifacetadas de um grupo de mulheres aparentemente alinhadas num convívio doméstico voluntarioso, cuja superfície fraterna logo se desmorona ao passo em que se revelam seus verdadeiros sentimentos e anseios. O roteiro do filme tece uma série de incursões ao passado dessas quatro mulheres (por meio de flashbacks individuais) para justificar e lançar luz às situações do presente, desenvolvendo um intenso estudo psicológico do grupo a partir de suas respectivas importâncias nos eventos desencadeados. Bergman constrói, portanto, sua narrativa evocando a perspectiva de cada uma das personagens e compondo uma espécie de mosaico de impressões, motivações e personalidades conflitantes, ancorado numa estilização toda metafórica dos closes que avermelham a textura do plano conduzindo o espectador trama a dentro. O formalismo sóbrio que o diretor sueco persegue na composição das cenas exala um perfeccionismo e uma meticulosidade percebidas no conceito bastante artístico da fotografia de Sven Nykvist (cujos quadros evocam verdadeiras pinturas), mas também, e sobretudo, no controle preciso dessa encenação intensamente dramática e provocante que se aproveita da profusão das performances, do trabalho exímio de uma sonoplastia aterradora e da ambientação claustrofóbica para gerar angústia, tensão e repulsa, evocando, inclusive, o terror. O enredo do longa gira em torno das irmãs Agnes (Harriet Andersson), karin (Ingrid Thulin), Maria (Liv Ullmann) e também da empregada e cuidadora Anna (Kari Sylwan), todas convivendo por um longo tempo numa mansão aristocrática no campo, experimentando e dividindo cada uma a sua forma, os percalços no cuidado da debilitada Agnes (acometida por uma doença extremamente agressiva e que a faz perder o ar, contorcendo-se de dores). É desta forma que Bergman traça um paralelo sugestivo e perturbador entre a iminente morte da moribunda e os perfis psicológicos das demais mulheres que vão, à medida em que a narrativa avança, tendo suas verdadeiras ações pregressas e essências reveladas de forma crua e impiedosa.

Nesse sentido, o estudo de personagem ganha contornos singulares bem interessantes, uma vez que a intenção aqui parece ser a de incitar o espectador a confrontar as personalidades e motivações através das análises e das revelações escabrosas levadas a cabo pela narrativa. No caso de Agnes, Bergman explora a relação entre a infância triste e deprimida da personagem, e toda uma representação sombria e perturbadora da doença que a arrebata, revelando a intensidade da solidão da enferma e retratando de forma crua e direta suas convulsões intensas e crises respiratórias, no intuito de desestabilizar e chocar o espectador. Já Maria, vivida por Liv Ullman, esconde sob uma pretensa sensibilidade amistosa, afetiva e voluntária com as irmãs, uma indiferença leviana e hipócrita, importando-se no fim das contas, apenas com seus próprios interesses. Do outro lado, a figura histérica e autoritária de Karin ( Ingrid Thulin) encarna um ódio e uma revolta regurgitantes. Metida num matrimônio repulsivo e de conveniência, a personagem protagoniza, talvez, a cena mais chocante e aterradora do filme ao cortar a própria vagina com um pedaço de um copo quebrado trazido do jantar, numa espécie de demonstração masoquista extrema que pode ter inspirado Lars Von Trier em “Anticristo” , de 2009. Agora, em se tratando da cuidadora Anna (Kari Sylwan), a trama constrói sem reservas, a figura mais verdadeira, piedosa e humanizada do enredo. Além de cuidar dos afazeres domésticos e estar à disposição de Agnes praticamente o tempo todo, Anna resiste passiva e estoica aos desequilíbrios e falsidades de Karin e Maria, sempre transmitindo um afeto sincero de mãe e amante (a relação homossexual entre senhora e criada aqui passa longe de uma discreta sugestão). Após a morte inevitável de Agnes, a trama Bergman expõe sem mesuras e comedimentos toda a avareza e a mesquinhez que rege as relações no interior desse núcleo familiar burguês, revelando, ao final, a discussão insensível e cínica entre as irmãs a respeito dos destinos dos bens e da mansão, e sobretudo, reiterando o pouco caso e a total indiferença das patroas em relação ao futuro da criada que tanto tempo de vida dedicou à família. "Gritos e Sussurros" é um estudo de personagens complexo, profundo e estarrecedor, e que acaba deixando no espectador aquele sabor amargo de indignação e injustiça frente ao arbítrio de uma elite social parasitária, hipócrita e materialista.
Por: Ábine Fernando Silva
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