Filhos da Esperança (2006)
- Ábine Fernando Silva
- 1 de abr. de 2021
- 4 min de leitura
Atualizado: 19 de out. de 2024
Direção: Alfonso Cuarón
Roteiro: Alfonso Cuarón, Timothy J. Sexton, David Arata, Mark Fergus e Hawk Ostby.
Elenco principal: Theo Faron (Clive Owen), Julian Taylor (Julianne Moore), Jasper Palmer (Michael Caine), Kee (Claire-Hope Ashitey), Luke (Chiwetel Ejiofor) e Miriam (Pam Ferris).

Distopia que se debruça sobre o horizonte da extinção da espécie humana e sobre o fracasso do processo civilizatório, “Filhos da Esperança” expõe um cenário futurista desalentador próximos, onde a pobreza, a miséria, a opressão militarista e a xenofobia reinam soberanas numa sociedade acuada, envelhecida e sob a forte influência emotiva da espetacularização midiática. O longa do diretor mexicano descortina uma realidade onde a sociedade mundial de forma geral se encontra impossibilitada de gerar descendentes, embora alguns casos pontuais de nascimento tenham ocorrido há alguns anos antes. É neste contexto que Theo Faron (Clive Owen), ex-ativista político acaba sequestrado pelos “Peixes”, movimento que defende a causa dos oprimidos e marginalizados Fúgis (imigrantes que tentam se estabelecer na Inglaterra) e que tem como liderança provisória Julian Taylor (Julianne Moore) a ex-esposa do protagonista. Julian recruta seu ex-companheiro (o único a quem de fato confia para além de seus correligionários), oferecendo-lhe dinheiro para uma missão arriscada e perigosa de levar até o sul (litoral), atravessando o país, a Fúgi Kee (Claire-Hope Ashitey), prestes a dar a luz à única criança da humanidade depois de tantos anos. O perfeccionismo de Cuarón se revela logo de cara na forma com que o diretor aborda o caos urbano e a decadência social, recorrendo a uma ambientação austera, policialesca e hostil bem no coração de uma Londres atravessada pela degradação física dos espaços, pela pobreza, pela mendicância e assolada por atentados terroristas (promovidos sorrateiramente pelo próprio governo), além dos protestos em massa. O decadentismo realista e lúgubre da fotografia de Emmanuel Lubezk permeia os ambientes fechados e as paisagens externas, sublinhando uma espécie de obscurantismo humano generalizado e chamando a atenção para a difusão do desespero e da falta de perspectivas coletiva (o filme recebeu uma indicação ao Oscar de Melhor Fotografia). A câmera de mão tensa e vibrante, operando como uma testemunha ocular e registrando com verdade as mazelas íntimas e as intempéries emocionais de Faron e Kee, mergulha intensamente na instabilidade social retratada pela encenação, conferindo folego e emoção, inclusive, às sequencias de ação. O roteiro do longa consegue "amarrar" bem esse aspecto mais gráfico do contexto espacial com os motivos e dramas dos personagens, cujas vidas são diretamente afetadas por aquela caótica e opressiva condição. Há um dinamismo versátil na trama que jamais esmorece, uma vez que os roteiristas reservam ao espectador uma série de elementos instigantes: surpresas repentinas (a morte de Julian), um “plot twist” escabroso (a traição dos Peixes), uma boa dose de alívio cômico e de carisma em relação à certas figuras, além de momentos emocionantes e surpreendentes (a cena do parto de Kee talvez seja uma das mais convincentes e naturalistas já produzidas pelo cinema). Vale ressaltar ainda esse ímpeto obstinado em torno de um protagonista que não mede esforços para escapar de Luke (Chiwetel Ejiofor) e seus asseclas, protegendo a jovem grávida e honrando a memória de sua ex-esposa.

Embora "Filhos da Esperança" apresente sim alguns "deslizes" de roteiro, o apelo mais emotivo do drama, disposto na trilha clássica, na estilização visual e nessa pegada cativante dos personagens acabam contornando certas incongruências um tanto óbvias da trama (a fuga de Faron, kee e Miriam da fazenda dos Peixes num veículo que funciona no tranco e a bela sequência final da jovem mãe carregando seu bebê, escoltada pelo protagonista e interrompendo num instante catártico o conflito armado). Nesse sentido, Faron encarna a derrota, a descrença política e a desesperança (conforme a trama avança descobrimos que muito da mágoa e resignação do personagem se dá pela frustração e decepção com movimentos sociais que encabeçava e, sobretudo, pela morte prematura do filho, vítima de uma pandemia de gripe). Seu oportunismo material e indiferença são transformados pelo trauma do assassinato de Julian e a partir daí, o protagonista agarra com unhas e dentes uma missão sublime, redentora e talvez auspiciosa para a humanidade, entregando-se de corpo e alma para livrar Kee (protegendo-a como uma filha) das intenções inescrupulosas dos Peixes, deixando-a sob os cuidados do misterioso, mas confiável “Projeto Humano”. Já a personagem vivida por Claire-Hope Ashitey tem destaque que se avoluma, ganhando presença dramática, principalmente no último ato. A jovem mãe assustada, incrédula e desconfiada vai aos poucos se entrosando com Faron (confiando na amizade e nos conselhos que Julian lhe dera), construindo laços de amizade sinceros com seu “protetor” e demonstrando força, resistência e coragem inestimáveis para atravessar sua árdua jornada. Cabe destacar ainda o vilão engajado e militante interpretado por Chiwetel Ejiofor , cujo idealismo social supostamente digno acaba deturpado por suas próprias ações e práticas corruptas. "Filhos da Esperança” comunica em sua distopia estilizada e decadentista a lúcida, sensível e complexa visão de mundo de seu realizador que esbanja um notável domínio estético em quase duas horas imersivas, reflexivas e emocionantes de filme.
Por: Ábine Fernando Silva
Muito boa sua visão dos elementos do filme. Sua análise técnica foi impecável. É realmente um filme memorável de um diretor que se destaca no seu tempo. 👏👏