Bingo: O Rei das Manhãs (2017)
- Ábine Fernando Silva
- 3 de mar. de 2021
- 4 min de leitura
Atualizado: 26 de mar. de 2021
Direção: Daniel Rezende
Roteiro: Luiz Bolognesi
Elenco principal: Vladimir Brichta, Leandra Leal, Cauã Martins, Emanuelle Araújo, Ana Lúcia Torre, Tainá Müller, Augusto Madeira, Pedro Bial.

Baseado na biografia de Arlindo Barreto, o intérprete mais polêmico e controverso do famoso palhaço “Bozo”, personagem icônico de um programa infantil do SBT nos anos 80, o filme de Daniel Rezende ao narrar uma história de ascensão, queda e redenção opta pela dosagem na medida certa do humor auto-irônico e do drama, construindo uma atmosfera convincente, saudosista e repleta de símbolos de época que envolve um sujeito inquieto, inconformado, teimoso e plenamente convencido do próprio potencial artístico, tão mal aproveitado e subestimado no meio televisivo e no cinema. Após algumas participações nada honrosas em produções cinematográficas eróticas (as emblemáticas pornôs chanchadas) e pequenas pontas em insignificantes papéis de telenovelas, Augusto Mendes/Bingo (Vladimir Brichta), driblando o baixo astral e a falta de reconhecimento, resolve comparecer a outro teste dramatúrgico desta vez numa outra emissora concorrente. Inusitadamente o criativo e irreverente ator resolve participar de um processo seletivo rigoroso para um programa infantil e que rolava ali mesmo, visando à escolha de um intérprete a altura do badalado palhaço americano “Bozo”, já consagrado na terra do Tio Sam (que por questão de direitos autorais no filme se chama Bingo). Augusto Mendes se sai tão bem, mas tão bem na base do improviso, do carisma, da chacota e da zuação com o produtor gringo que acaba sendo escolhido e contratado como apresentador, iniciando uma guinada vertiginosa de sucesso e audiência, acompanhada por sua vez, do distanciamento físico e afetivo do único filho, das noitadas e farras com bebidas, cocaína e prostitutas, muitas delas inclusive, estendendo-se nos camarins, antes mesmo de entrar ao vivo para tocar o programa. Desta forma, Augusto Mendes cada vez mais angustiado e deprimido com o anonimato de sua identidade por trás da maquiagem do adorado palhaço despenca ladeira a baixo, tentando encontrar no amor pelo filho e pela profissão a força necessária para escalar o fundo do poço. O roteiro de Luiz Bolognesi tem o mérito de mergulhar com propriedade no espírito dos anos de 1980 para explorar a personalidade irrequieta e assertiva de um personagem que sente não ter ainda encontrado seu verdadeiro e merecido lugar na tão competitiva e vaidosa carreira cênica ou no show business televisivo. Enfatiza-se um protagonista sempre muito disposto e auto-confiante acerca de seu talento, cuja relação íntima e carinhosa com o filho Gabriel (Cauã Martins) toma um tempo considerável da narrativa que busca humanizar Augusto Mendes, retratar sua sensibilidade imatura, espontânea e aventuresca que de certa forma o atrai para os excessos e o vício. A tríade, ascensão/queda/redenção é sóbria, sem exageros ou melindres e o roteiro acerta em não tornar tão óbvia a conversão religiosa do palhaço como elemento primordial de sua “volta por cima”. Além disso, o filme aborda com sarcasmo singular os bastidores dos programas infantis, a total indiferença aos trâmites éticos ou de censura numa programação ao vivo, os improvisos e a sagacidade da experimentação, da ousadia para conquistar o público, a guerra de audiência e a sordidez dos corredores por trás das câmeras. Embora as atitudes do personagem de Vladimir Brichta emanem uma comicidade própria e genuína, a jornada que se desenvolve nas telas tem como um dos seus motes o drama pessoal do artista, lúcido de suas potencialidades, da importância sócio-cultural da profissão, mas insatisfeito com o anonimato ou a desvalorização.

O universo de uma geração que cresceu na frente da televisão assistindo a programas infantis concebidos muitas vezes na base da apelação sem noção e desleal por audiência é reproduzido com uma insistência saudosista que beira a banalidade. Sendo assim, a trilha sonora com muito pop rock traz algumas pérolas inconfundíveis como: “"That's Good" (Devo), “Conga, Conga, Conga” (Gretchen) e “Serão extra” (Dr. Silvana & Cia), assim como o design de produção referencial dos ambientes internos, a pornô chanchada, a fotografia em tons pastéis um tanto dessaturadas e alguns personagens icônicos da mídia brasileira que dão as caras no filme (refiro-me precisamente a rainha do bumbum) ajudam a compor um quadro apaixonado daquela década. Daniel Rezende dirige de forma intimista, perscrutando seu protagonista, interessado em enquadramentos fechados que ressaltam as disposições emotivas de Augusto Mendes/Bingo, estabelecendo um tom “tragicômico” para sua narrativa, mas sem negligenciar uma cinematografia característica, de exaltação, com planos abertos que absorvem os ambientes. Há algumas digressões que confundem propositalmente o expectador, fruto da personalidade lúdica do protagonista e a montagem eficiente acompanha com sintonia os altos e baixos de sua trajetória. Por se tratar de um estudo de personagem, “Bingo: O Rei das Manhãs” possui interesse quase exclusivo no papel vivido por Vladimir Brichta que realmente se esforça para encontrar o equilíbrio dramático necessário para interpretar Augusto/Arlindo e Bingo/Bozo. O ator global acaba convencendo muito mais durante as performances por trás da fantasia do icônico palhaço, o que de fato importa para o filme. Destaque para Leandra Leal na pele de Lúcia, produtora e diretora do programa infantil, evangélica convicta, profissional compenetrada e dedicada de quem o protagonista tenta sem sucesso aproveitar-se. Embora a personagem da atriz não apresente tantos desafios e tenha tratamento mais linear no roteiro, sua simpatia e solidariedade com o colega de profissão o influenciam a largar o passado de vícios e converter-se ao evangelho (já nos créditos finais, menciona-se o casamento de Arlindo Barreto com a produtora). O ator mirim Cauã Martins que interpreta Gabriel também chama a atenção pela sensibilidade afetiva e a sinceridade na relação com o pai, abalada pela ascensão meteórica do sucesso do palhaço. “Bingo: O Rei das Manhãs” funciona bem como drama de superação num fluxo narrativo saudosista e reverencioso que dialoga com eficiência com os contextos da cultura dos bastidores da TV brasileira numa época marcada pela queda de braços entorno da única mídia capaz de fascinar as crianças.
Por: Ábine Fernando Silva
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