Aleluia, Gretchen (1976)
- Ábine Fernando Silva
- 30 de mar. de 2021
- 4 min de leitura
Direção: Sylvio Back
Roteiro: Sylvio Back, Manoel Carlos Karam e Oscar Milton Volpini
Elenco principal: Carlos Vereza, Lílian Lemmertz, Miriam Pires, Sérgio Hingst, Selma Egrei, Kate Hansen, Elizabeth Destefanis, José Maria Santos, Narciso Assumpção.

Lançando mão de um sarcasmo visceral, “Aleluia, Gretchen” de Silvio Back se debruça sobre aspectos relevantes da formação político-social brasileira no fim dos anos de 1930 com a onda imigratória alemã ao sul do país, haja vista a iminência da Segunda Guerra Mundial, e que trouxe consigo inevitavelmente, uma gama significativa de elementos culturais, visões de mundo, concepções filosóficas e políticas muito bem representados pelo microcosmo institucional dos Kranz, a família germânica recém-chegada cujos costumes e o alinhamento ideológico com o Führer escancaram ainda mais as contradições e os conflitos de uma sociedade já estigmatizada pelo autoritarismo e o racismo. Os Kranz chegam ao Brasil por volta de 1939 e adquirem o “Hotel Flórida”, passando seus dias entre as atividades laborais e as reflexões da vida pregressa na Alemanha, onde a identificação e a adesão de boa parte de seus membros às concepções do Nazismo reverberam na forma como “enxergam” a nova pátria, como se relacionam entre si e como consideram os próprios brasileiros. Uma das grandes discussões propostas por Silvio Back em forma de alegoria se encontra na crítica a pseudo harmonia que comporia a sociedade tupiniquim, caracterizada pela pluralidade cultural e étnica que sugeriria um convívio pacífico e democrático, apontando para um desenvolvimento das relações que não considerariam o conflito étnico, cultural, social ou político. Ora, a ironia da trama e sua crueza ao tratar de questões histórico-sociais tão sérias contradizem por excelência a tese nefasta da harmonia nacional, onde cada personagem parece simbolizar certo segmento do povo em turbulência. Desta forma, do lado alemão, tem-se a figura da matriarca Lotte (Miriam Pires) que não compactua abertamente com nada essencialmente brasileiro, desprezando o que ela toma como uma nação atrasada, de mestiços, com um povo sensual e malandro. O professor Ross (Sérgio Hingst) representa o ponto de inflexão dos Kranz, assumidamente liberal e avesso à ideologia nazista a qual crítica categoricamente os princípios e contradições, porém, comporta-se de forma passiva, conformada e até indiferente em relação à inserção venenosa deste pensamento dentro de seu próprio convívio familiar e íntimo. Do lado brasileiro, Aurélio (José Maria Santos), partidário do Integralismo despreza o governo de Getúlio Vargas, reproduzindo a postura da pior espécie do “vira-lata”, identificado e vislumbrado com a versão fascista da ideologia alemã cultivada pela família imigrante. Já o caixeiro viajante Eurico (Carlos Vereza) carrega consigo a perspicácia e a malícia que repudiam os valores e a concepção de mundo dos proprietários do hotel, incomodando com seu temperamento ambíguo, subversivo e com sua conduta sarcástica e provocadora. Já Repo (Narciso Assumpção), o negro agregado, simboliza a complexidade e as contradições das relações étnico-culturais no Brasil, uma vez que sofre na pele a opressão, a exploração, o racismo e o desprezo dos Kranz, contudo, aparece de forma pseudo integrada em todas as reuniões familiares, o que por sua vez chama a atenção para o componente emocional e afetivo presente nas relações de dominação, já que o personagem de Narciso Assumpção parece não compreender à crueldade da reprodução das ideias e comportamentos que lhe são nocivos, identificando-se e defendendo seus opressores.

O roteiro assinado pelo próprio Silvio Back e que conta com a colaboração de Manoel Carlos Karam e Oscar Milton Volpini divide a narrativa em três atos que marcam a chegada da família germânica ao sul do país e seu estabelecimento em solo nacional até 1976 (o que seriam os dias atuais), sublinhando de forma ácida e implacável a ebulição dos conflitos ideológicos, sociais e políticos ao longo do tempo, ao passo que busca refletir como tais fenômenos e tensões se travestem de “harmonia” social problematizando a famigerada tese da passividade da união racial brasileira. Além disso, o título do filme “Aleluia, Gretchen” faz menção direta ao bebê que Heike (Kate Hansen), uma das filhas de Lotte e Ross, gestava, fruto de uma suposta relação com um oficial da SS, fato desmentido quando se descobre que a moça fora violentada por vários membros da polícia nazista. A morte da criança durante o parto, além de sugerir simbolismos e metáforas nefastas acerca da ideologia nazista entre os alemães e seus descendentes na nova pátria, acaba decepcionando definitivamente os Kranz, alimentando ainda mais a amargura e o pessimismo dos donos do Hotel Flórida. A direção de Silvio Back investe na construção de uma atmosfera austera, cínica e perversa que aborda os personagens alemães através de uma ótica fria, intransigente e altiva, explorando as dificuldades de aceitação, adaptação e convívio com um povo e uma cultura completamente diferentes. A câmera invasiva e impertinente que perscruta os cômodos e corredores do ambiente fechado do hotel se interessa pelos comportamentos, personalidades e relações que se travam, deixando entrever certo aspecto irônico e trágico na forma como os Kranz sustentam sua ideologia nazista e visão de mundo. Há certo experimentalismo de caráter documental que trespassa a narrativa, principalmente quando se registra em planos mais fechados as considerações e depoimentos dos personagens sobre o Estado, a política e a sociedade, o que reforça o estilo realista e provocativo do longa. Embora certas interpretações recorram a uma teatralidade que gera estranheza, assim como a maioria dos diálogos soam bastante formais e pouco naturais, “Aleluia, Gretchen” tem alguns nomes importantes no elenco que se destacam como Miriam Pires que empresta um ar autoritário, arrogante e preconceituoso à matriarca Lotte; Carlos Vereza vive um Eurico cuja argúcia e a lucidez intelectual transformam-no em persona non grata à família alemã, o que resulta em sua tortura pelos oficiais da SS em fuga para Buenos Aires e finalmente Kate Hansen comunica com intensidade desiquilíbrio e instabilidade emocional como a perturbada Heike, ainda mais abalada mentalmente depois da morte precoce de Gretchen durante o parto. Silvio Back ao final do terceiro ato recorre à sátira em forma de “carnavalização” para consumar sua perspectiva alegórica e indigesta acerca da formação da sociedade brasileira no sul do país. O piquenique no campo que reúne a família alemã, os oficiais da SS, Repo e Aurélio para a comemoração literal do feriado constitui uma espécie de retrato perverso e desumano de um país que insiste em varrer seus problemas para debaixo do tapete e festejar o irreconciliável.
Por: Ábine Fernando Silva
Sincronia com a boçalidade do Brasil atual? O filme retrata com escárnio um dos pilares da formação social nacional: o reforço recorrente do autoritarismo na vertente verde oliva. Será que são capazes de se mirar no espelho e enxergarem a caricatura trágica de si mesmos? Criticidade não condiz com as virtudes dos asseclas, mas e os dissidentes?